Um repórter me perguntou anteontem o que eu achava das “admiráveis performances brasileiras nos campos de Strasburgo e Bordeaux.”
Respondi ao repórter – que depois inventou ter conversado comigo em plena praça pública, entre solavancos da multidão patriótica na própria tarde da vitória dos brasileiros contra os tchecoslovacos – que uma das condições dos nossos triunfos, este ano, me parecia a coragem, que afinal tiveramos completa, de mandar à Europa um team fortemente afro-brasileiro. Brancos, alguns, é certo; mas um grande número de pretalhões bem brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros.
Porque a escolha de jogadores brasileiros para os encontros internacionais andou por algum tempo obedecendo ao mesmo critério do Barão de Rio Branco quando senhor-todo-poderoso do Itamaraty: nada de pretos nem de mulatos chapados; só brancos ou então mulatos tão claros que parecessem brancos ou, quando muito caboclos, deviam ser enviados ao estrangeiro. Mulatos do tipo do ilustre Domício da Gama a quem o Eça de Queiroz costumava chamar, na intimidade, de “mulato cor-de-rosa”.
Morto Rio Branco, desaparecia o critério anti-brasileiro do Brasil se fingir de República de arianos perante os estrangeiros distantes que só nos conhecessem através de ministros ruivos ou de secretários de legação de olhos azuis. E de tal modo desaparecia o falso e injusto critério da seleção de louros que o próprio Barão seria substituído por mulatos ilustres – um deles o grande brasileiro que foi Nilo Peçanha.
Nilo Peçanha… Assistindo também anteontem à fita que reproduz o jogo dos brasileiros contra os poloneses, foi de quem me lembrei – de Nilo Peçanha. Porque o nosso estilo de foot-ball lembra seu estilo político.
O nosso estilo de jogar foot-ball me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política.
Os nossos passes, os nossos pitu’s, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar foot-ball, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil.
Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam alas de jogo ou de arquitetura. Porque é um mulatismo, o nosso – psicologicamente, ser brasileiro é ser mulato – inimigo do formalismo apolíneo – para usarmos com alguma pedanteria a classificação de Spengler – e dionisíaco a seu jeito – o grande jeitão mulato. Inimigo do formalismo apolíneo e amigo das variações; deliciando-se em manhas moleironas, mineiras a que se sucedem surpresas de agilidade. A arte do songa-monga.
Uma arte que não se abandona nunca à disciplina do método científico mas procura reunir ao suficiente de combinação de esforços e de efeitos em massa a liberdade para a variação, para o floreio, para o improviso. Até mesmo a liberdade para a ostentação ou para a exibição do talento individual num jogo de que os europeus têm procurado eliminar quase todo o floreio artístico, quase toda a variação individual, quase toda a espontaneidade pessoal para acentuar a beleza dos efeitos geométricos e a pureza de técnica científica. Sente-se nesse contraste o choque do mulatismo brasileiro com o arianismo europeu. É claro que mulatismo e arianismo são considerados não como expressões étnicas mas como expressões psico-sociais condicionadas por influências de tempo e de espaço sociais.
O contraste pode ser alongado: o nosso foot-ball mulato, com seus floreios artísticos, cuja eficiência – menos na defesa do que no ataque – ficou demonstrada brilhantemente nos encontros deste ano com os poloneses e os tchecoslovacos é uma expressão de nossa formação social democrática como nenhuma.
Rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a excessos de uniformização, de standartização; a totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou espontaneidade pessoal.
No foot-ball, como na política, o mulatismo brasileiro se faz marcar por um gosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembra passos de dança e de capoeiragem. Mas sobretudo de dança. Dança dionisíaca. Dança que permita o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual. Dança lírica.
Enquanto o foot-ball europeu é uma expressão apolínea – no sentido spengleriano – de método científico e de esporte socialista em que a pessoa humana resulta mecanizada e subordinada ao todo – o brasileiro é uma forma de dança, em que a pessoa humana se destaca e brilha.
O mulato brasileiro deseuropeisou o foot-ball dando-lhe curvas, arredondados e graças de dança. Foi precisamente o que sentiu o cronista europeu que chamou aos jogadores brasileiros de “bailarinos da bola”. Nós dançamos com a bola.
Havelock Ellis – que o meu amigo Agrippino Grieco não sei porque supõe um simples Mantegazza inglês, quando Ellis é, na verdade, um dos pensadores mais lúcidos e um dos humanistas mais completos do nosso tempo – se visse o team brasileiro jogar foot-ball acrescentaria talvez um capítulo ao seu ensaio magnífico sobre a dança e a vida.
O estilo mulato, afro-brasileiro, de foot-ball é uma forma de dança dionisíaca.”
Gilberto Freyre, Diario de Pernambuco, 17 de junho de 1938.
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