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Legislações racistas: Carta Régia de 20 de Outubro de 1620 contra os mulatos de Cabo Verde

Nos séculos XVIII e XIX, o mestiço, que consolidara a sua posição num grupo social
intermédio materializou fortemente uma cultura intermédia, mesclada – produto das recomposições
de culturas europeias e africanas. Nota-se que o fenómeno de mestiçagem neste espaço insular não
foi só uma mistura biológica de dois ou mais povos distintos, pois foi também uma mistura de duas
ou mais culturas distintas que deu origem a uma nova, a cabo-verdiana. Ora, seguindo a perspectiva
adoptada por Serge Gruzinski, empregou-se o termo “mestiçagem” aqui para designar as misturas
que ocorreram em solo cabo-verdiano nos séculos XV e seguintes entre “seres humanos,
imaginários” e formas de vida, vindos do continente africano e europeu30. Portanto, aceita-se que a
emergência da sociedade cabo-verdiana foi fruto do cruzamento de povos vindos dos dois
continentes que se enraizaram no espaço cabo-verdiano, sobrevivendo, numa primeira fase entre as
“culturas-mães” até atingir a maturidade e definir-se com contornos próprios a cultura que se pode
caracterizar de cabo-verdiana. Desse encontro resultou “confrontação e diálogo” que vai para além
do biológico, ou seja, além dos cruzamentos genéticos e a produção de fenótipos como fenómenos
físicos e cromáticos, houve também cruzamentos culturais, bem expoentes nos aspectos
linguísticos, religiosos, por exemplo, como principais marcadores identitários. Contudo, a
mestiçagem como um “fenómeno eminente diversificado e sempre em contínua evolução”,
verificou-se na sociedade cabo-verdiana que “escapa a qualquer permanência, nunca chegando a
termo, desencoraja[ndo] a qualquer tipo de definição”31. Sem que, no entanto, deixe de ser única e
particular, com o seu trajecto histórico, social, cultural e identitário próprio.
Depois do encontro,

031A Carta Régia de 20 de outubro de 1620, do rei de Portugal, o espanhol D. Filipe II,  contém Alvará contra as “castas de mulatos” de Cabo Verde. Destaca-se que o documento vai contra o mito de que racistas não distingam entre mulatos e negros difundido por movimentos anti-mestiços no Brasil na tentativa de justificar a política racista petista de imposição da identidade negra a pardos.

Em Carta Regia de 20 de Outubro de 1620 – Hei por bem e mando, que, para que nas Ilhas de Cabo Verde e S. Thomè se extinguam, quanto fór possivel, as castas de mulatos, que nellas ha, que nas Relações desse Reino se degradem para ellas as mulheres, que se costumam degradar para o Brasil. = Christovão Soares.

De Ius Lusitaniae – Fontes Históricas do Direito Português.

Abaixo, trecho de O Cabo-verdiano através dos olhos de forasteiros:representações nos textos portugueses (1784-1844).

A situação geo-ecológica do arquipélago, de clima tropical seco, em frente à costa africana, virada para as Américas, e a caminho da Índia Oriental fez com que, a partir do século XV, o arquipélago se tornasse num ponto de entrada de pessoas, culturas, plantas e animais. Ao povoar as ilhas, a Coroa procurava apropriar-se da terra “recém-achada”, ao mesmo tempo que a sua posição estratégica servia de apoio à navegação, estabelecendo também a ligações a África, às Índias Orientais, à Europa e, nos séculos seguintes, às Américas.

Demograficamente inferiores, os europeus formavam o grupo social “dominante”, e agiam de acordo com as propostas das autoridades portuguesas, concretizando a colonização portuguesa. O grupo dos europeus era na sua maioria constituído por homens, que se envolvia com mulheres negras, escravas, dando origem ao homem mestiço: um novo tipo humano, nem branco nem preto, não só biologicamente mas também culturalmente diferente. Esse fenómeno de mestiçagem continua até aos dias de hoje.

Nos séculos XVIII e XIX, o mestiço, que consolidara a sua posição num grupo social intermédio materializou fortemente uma cultura intermédia, mesclada – produto das recomposições de culturas europeias e africanas. Nota-se que o fenómeno de mestiçagem neste espaço insular não foi só uma mistura biológica de dois ou mais povos distintos, pois foi também uma mistura de duas ou mais culturas distintas que deu origem a uma nova, a cabo-verdiana. Ora, seguindo a perspectiva adoptada por Serge Gruzinski, empregou-se o termo “mestiçagem” aqui para designar as misturas que ocorreram em solo cabo-verdiano nos séculos XV e seguintes entre “seres humanos, imaginários” e formas de vida, vindos do continente africano e europeu. Portanto, aceita-se que a emergência da sociedade cabo-verdiana foi fruto do cruzamento de povos vindos dos dois continentes que se enraizaram no espaço cabo-verdiano, sobrevivendo, numa primeira fase entre as “culturas-mães” até atingir a maturidade e definir-se com contornos próprios a cultura que se pode caracterizar de cabo-verdiana. Desse encontro resultou “confrontação e diálogo” que vai para além do biológico, ou seja, além dos cruzamentos genéticos e a produção de fenótipos como fenómenos físicos e cromáticos, houve também cruzamentos culturais, bem expoentes nos aspectos linguísticos, religiosos, por exemplo, como principais marcadores identitários. Contudo, a mestiçagem como um “fenómeno eminente diversificado e sempre em contínua evolução”, verificou-se na sociedade cabo-verdiana que “escapa a qualquer permanência, nunca chegando a termo, desencoraja[ndo] a qualquer tipo de definição”. Sem que, no entanto, deixe de ser única e particular, com o seu trajecto histórico, social, cultural e identitário próprio.

Depois do encontro, o grupo mestiço, continua a crescer em força e a ganhar terreno/poder no seio administrativo, eclesiástico, económico e social da vida cabo-verdiana. O número de mestiços aumentou em tal proporção em relação ao total de habitantes que, pelo alvará de 20 de Outubro de 1620, se determinou que se degradassem para Cabo Verde as mulheres que se costumam degradar para o Brasil, a fim de que se extinga quanto possível a “raça dos mulatos”. Contudo, no arquipélago de Cabo Verde, o fenómeno de antimestiçagem e desmestiçagem, que consistia em travar o aumento dos mestiços e da sua cultura, ou até eliminá-los, foi retomado no século XIX. Além da concorrência ao poder social, económico e administrativo que poderia pôr em causa a soberania portuguesa, aos mestiços eram associados um conjunto complexo de conotações simbólicas negativas, principalmente a sua africanidade.

Aos olhos desses forasteiros foram esses fenómenos e o continuado tráfico de escravos os principais factores que teriam “desviado” os cabo-verdianos de adoptar uma cultura portuguesa/europeia e de serem portugueses como os de Portugal. Com a presença das culturas africanas, estes habitantes das ilhas tinham mais opções a fazer e acabaram por adoptá-las de acordo com as circunstâncias e necessidades e readaptá-las às suas realidades consoante o meio geográfico, económico, social, político em que viviam.
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De Danilo de Jesus da Veiga dos Santos, O Cabo-verdiano através dos olhos de forasteiros: representações nos textos portugueses (1784-1844), Universidade de Lisboa, 2011, p.11-13.

Posted in Antimestiça, Arquivo, Colonial, Documentos oficiais, Legislação, Mestiçofobia | Desmestiçagem, Português, Racista.

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One Response

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  1. Leão says

    Observem neste documento que mesmo no início do séc. XVII os racistas de Portugal faziam distinção entre mulatos e negros (é pouco provável que os racistas daquela época fossem menos racistas do que os de hoje), diferentemente do que alardeia a propaganda de certos movimentos negros que afirmam, tentando justificar enegrecimento oficial dos mestiços, que racista não distingue mulato de negro.